Tateia o chão seguro e compassivo: de cor repleta de vontades náufragas, gravetos de marrom despedaçado, paralelepípedos em clausura, enverdecidos de um cinza mornado, que esbarram no horizonte desmaiado. Ela corre as distâncias no olhar seco, ela corre os tornados tropicais, ela corre os tornados combalidos, pelo precioso colar da febre. São roseolhos tisnados, sofridos; e feridas alcantilopalinas; são corpos azulentrechocados. Mas também há flores e borboletas, e nelas qualquer cor é muito pouca, pois não há nada mais descabido, que contar o oportuno da rosa. O cheiro de café nas folhas soltas, de terra subindo durante o passo, de velha madeira de dar em doido, de correr mais do que o suor comporta. Cheiro de torto nos pulmões que enxergam: a grama levantada pela foice, de ar gelado de serra venturosa, de ladeira descida às baforadas, de todos os caminhos dos seus dedos.
Gosto de lençol apertado em pernas, de framboesa sob a pele enxuta. Amanitas servidas ao café. Ponta da língua ocultando o sutil, o doce do olhar do suor do outro. A terra subindo, entrando na boca. Enquanto os abraços trocam de dono. Há sentido infinito em alcançar, com o paladar anestesiado, o corpo reclinado e solto, os cotovelos que apoiam a matéria, o recôndito d’alma descoberta.
Ela se ilude com o tempo, mas aí tateia o chão seguro e compassivo.
Pois não há tempo que se esqueça de minar as forças Tampouco, resista travestido de sorte zombeteira
Indo e vindo deixa sempre o gosto do nosso gosto
Quando se percebe que tudo apenas resta
(Antônio L. Pereira)
Ophelinha:
Agradeço a sua carta. Ella trouxe-me pena e allivio ao mesmo tempo. Pena, porque estas cousas fazem sempre pena; allivio, porque, na verdade, a unica solução é essa - o não prolongarmos mais uma situação que não tem já a justificação do amor, nem de uma parte nem de outra. Da minha, ao menos, fica uma estima profunda, uma amisade inalteravel. Não me nega a Ophelinha outro tanto, não é verdade?
Nem a Ophelinha, nem eu, temos culpa nisto. Só o Destino terá culpa, se o Destino fosse gente, a quem culpas se attribuissem.
O Tempo, que envelhece as faces e os cabellos, envelhece tambem, mas mais depressa ainda, as affeições violentas. A maioria da gente, porque é estupida, consegue não dar por isso, e julga que ainda ama porque contrahiu o habito de se sentir a amar. Se assim não fosse, naão havia gente feliz no mundo. As creaturas superiores, porém, são privadas da possibilidade d’essa illusão, porque nem podem crer que o amor dure, nem, quando o sentem acabado, se enganam tomando por elle a estima, ou a gratidão, que elle deixou.
Estas cousas fazem soffrer, mas o soffrimento passa. Se a vida, que é tudo, passa por fim, como não hão de passar o amor e a dor, e todas as mais cousas, que não são mais que partes da vida?
Na sua carta é injusta para commigo, mas comprehendo e desculpo; decerto a escreveu com irritação, talvez mesmo com magua, mas a maioria da gente - homens ou mulheres - escreveria, no seu caso, num tom ainda mais acerbo, e em termos ainda mais injustos. Mas a Ophelinha tem um feitio optimo, e mesmo a sua irritação não consegue ter maldade. Quando casar, se não tiver a felicidade que merece, por certo que não será sua a culpa.
Quanto a mim…
O amor passou. Mas conservo-lhe uma affeição inalteravel, e não esquecerei nunca - nunca, creia - nem a sua figurinha engraçada e os seus modos de pequeneina, nem a sua ternura, a sua dedicação, a sua indole amoravel. Pode ser que me engane, e que estas qualidades, que lhe attribúo, fossem uma illusão minha; mas nem creio que fossem, nem, a terem sido, seria desprimor para mim que lh’as attribuisse.
Não sei o que quer que lhe devolva - cartas ou que mais. Eu preferia não lhe devolver nada, e conservar as suas cartinhas como memoria viva de uma passado morto, como todos os passados; como alguma cousa de commovedor numa vida, como a minha, em que o progresso nos annos é par do progresso na infelicidade e na desillusão.
Peço que não faça como a gente vulgar, que é sempre reles; que não me volte a cara quando passe por si, nem tenha de mim uma recordação em que entre o rancor. Fiquemos, um perante o outro, como dois conhecidos desde a infancia, que se amaram um pouco quando meninos, e, embora na vida adulta sigam outras affeições e outros caminhos, conservam sempre, num escaninho da alma, a memoria profunda do seu amor antigo e inutil.
Que isto de “outras affeições” e de “outros caminhos” é consigo, Ophelinha, e não commigo. O meu destino pertence a outra Lei, de cuja existencia a Ophelinha nem sabe, e está subordinado cada vez mais á obediência a Mestres que não permittem nem perdoam.
Não é necessario que comprehenda isto. Basta que me conserve com carinho na sua lembrança, como eu, inalteravelmente, a conservarei na minha.
Fernando
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Porque é triste, injusto e inútil.
Hoje, 19/04, seria o aniversário do "poeta que falou o português gostoso do Brasil", como disse um amigo meu. 126 anos de viagens a Pasárgada, pneumotórax, de impossíveis carinhos. 126 anos da Estrela da vida inteira. Não teve homenagem no Google, mas tem aqui. Lembranças ao poeta sórdido.
Nova Poética
Vou lançar a teoria do poeta sórdido.
Poeta sórdido: Aquele em cuja poesia há a marca suja da vida.
Vai um sujeito,
Sai um sujeito com a roupa de brim branco muito bem engomada, e na primeira esquina passa um caminhão, salpica-lhe o paletó de uma nódoa de lama: É a vida.
O poema deve ser como a nódoa no brim:
Fazer o leitor satisfeito de si dar o desespero.
Sei que a poesia é também orvalho.
Mas este fica para as menininhas, as estrelas alfas, as virgens cem por cento e as amadas que envelheceram sem maldade.
queria te explicar o porquê de não ter publicado o último texto da série de traduções que fez pra mim. não sei se percebeu, uma vez que não sabemos mais um do outro, mas fui publicando à medida das vivências e dos acontecimentos que premeditou, então fiquei esperando o final prometido, que não acontecia nunca. de quando se brotam certezas.
mas você sempre disse que eu demorava bastante até conseguir dar prosseguimento às coisas que eu mesma sabia que de um jeito ou de outro eu iria fazer. só precisava daquele impulsozinho da prima distante segurança ou de um leve golpe de inconsciência ou atrevimento. se bem que nesse caso não sei se dependia de alguma atitude minha, mas sim daquele nosso velho amigo Acaso.
pois bem, enfim publicarei. mas quis primeiro te escrever pra você me dar a benção. sempre precisei do seu "pode ir, Li, vai ficar tudo bem, você vai ver só." é, das nossas coisas, uma das que mais me fazem falta, agora que percorro sozinha esse corredor solitário da vida.
não sei (quer dizer, tenho quase certeza de que não é) se esse acontecimento é exatamente como imaginou, algo certo e concreto com aquele tom inabalável de um final feliz. mas acho que talvez o último texto que você me escreveu não descreva um fim, e sim um começo, estou certa?
se é assim, fico mais tranquila.
Um beijo - com açúcar e com afeto - e até.
L.
"esse é só o começo do fim da nossa vida, deixa chegar o sonho, prepara uma avenida, que a gente vai passar". (lembra?)
Tu sabes como é grande o mundo. Conheces os navios que levam petróleo e livros, carne e algodão. Viste as diferentes cores dos homens,as diferentes dores dos homens, sabes como é difícil sofrer tudo isso, amontoar tudo isso num só peito de homem... sem que ele estale.
Fecha os olhos e esquece. Escuta a água nos vidros, tão calma, não anuncia nada. Entretanto escorre nas mãos, tão calma! Vai inundando tudo... Renascerão as cidades submersas? Os homens submersos – voltarão?
Meu coração não sabe. Estúpido, ridículo e frágil é meu coração. Só agora descubro como é triste ignorar certas coisas. (Na solidão de indivíduo desaprendi a linguagem com que homens se comunicam.)
Outrora escutei os anjos, as sonatas, os poemas, as confissões patéticas. Nunca escutei voz de gente. Em verdade sou muito pobre. Outrora viajei países imaginários, fáceis de habitar, ilhas sem problemas, não obstante exaustivas e convocando ao suicídio.
Meus amigos foram às ilhas. Ilhas perdem o homem. Entretanto alguns se salvaram e trouxeram a notícia de que o mundo, o grande mundo está crescendo todos os dias, entre o fogo e o amor.
Então, meu coração também pode crescer. Entre o amor e o fogo, entre a vida e o fogo,
(meu coração cresce dez metros e explode. )
(Drummond)
____________________________ estúpido. ridículo. frágil. "I'll get used to this eventually, I know..."
Quando nessa noite, uma noite triste de água, Carlos e Craft o acompanharam a Santa Apolónia, ele disse-lhes na carruagem estas palavras, triste resumo dum amor romântico:
- Sinto-me como se a alma me tivesse caído a uma latrina! Preciso um banho por dentro!
Afonso da Maia ao saber este desastre do Ega, tinha dito a Carlos, com tristeza: - Má estreia, filho, péssima estreia!
E nessa noite, depois de voltar de Santa Apolónia, Carlos pensava nestas palavras, dizia também consigo: - Péssima estreia!... E nem só a estreia do Ega era péssima; também a sua. E talvez, por pensar nisso, as palavras do avô tinham tido aquela tristeza. Péssimas estreias! Havia seis meses que o Ega chegara de Celorico, embrulhado na sua grande peliça, preparado a deslumbrar Lisboa com as Memórias dum Átomo, a dominá-la com a influência de uma Revista, a ser uma luz, uma força, mil outras coisas... E agora, cheio de dívidas e cheio de ridículo, lá voltava para Celorico, escorraçado. Péssima estreia! Ele, por seu lado, desembarcara em Lisboa, com ideias colossais de trabalho, armado como um lutador: era o consultório, o laboratório, um livro iniciador, mil coisas fortes... E, que tinha feito? Dois artigos de jornal, uma dúzia de receitas, e esse melancólico capítulo da Medicina entre os Gregos. Péssima estreia!
Não, a vida não lhe parecia prometedora, nesse instante, passeando na sala de bilhar com as mãos nos bolsos, enquanto ao lado os amigos conversavam, e fora uivava o sudoeste. Pobre Ega, que infeliz ele iria, encolhido ao canto do seu wagon!... Mas os outros, ali, não estavam mais alegres. Craft e o Marquês tinham começado uma conversa sobre a vida, soturna edesconsoladora. De que servia viver, dizia Craft, não se sendo um Livingstone ou um Bismark? E o Marquês, com um ar filosófico, achava que o mundo se ia tornando estúpido.
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Com todo o desejo de que a literatura fizesse menos sentido na minha vida.