sábado, 18 de junho de 2011

Notas de saudade a uma distante presença

L: A felicidade é   fascista, odeio isso"
C: você e  seu   humor de vanguardista obsoleta. Você não quer ser feliz?
L: Je suis chaotique. Eu só não gosto de   obrigações, Mussolini.
C:  Façamos  a revolução!
L: Detesto perder gente. Dizimar, então, me cansa.. 
Vamos tomar um café primeiro?



Do Sono

           
Separados pelo manto da tosse os dois estão lá. Os lençóis embalados no meio, enlaçados por um sem número de ânsias incompletas, soluções desgarradas, tensões de um dia inconcluído. Não era só a negação que os apartava: o desejo também separa, quando confessado num sussurro de quem some. Eles se deitam, mas é como se estivessem de pé. Uma respiração de fumante a distingue dele. Uma respiração de asmático o diferencia dela. Era como se a osmose de anos os tivesse largado somente com as seqüelas do desejo da unicidade.

Sem embargo, eles não tinham mais muito que trocar mesmo. Suas manias eram tão reciprocamente conhecidas que eles as expurgavam, despejando essas roupas velhas lixo afora, olhando com o desdém de um espelho quebrado. Ver pelos olhos do outro era um hábito orgânico e transparente. Acostumaram-se a isso como quem se acostuma com um filete de água infiltrada.

Acordam de manhã. Ela sempre alguns momentos antes dele. Ela o olha com o vigor do dia seguinte, vai pra cozinha. Ele, alguns momentos depois, torce os dedos sobre o peito, enquanto ela, na cozinha, já pergunta quando ele vai parar de coçar o mamilo esquerdo e começar a se arrumar pra sair. Dizem que a solidão acompanhada é melhor.

Ele olha pra todas as palavras benditas que descem pelo chuveiro, se arruma, coloca a gravata, o terno. Ela termina o café, toma seu banho diário de cosméticos, se arruma, coloca o uniforme. Sorriem. Separados pelo manto da tosse os dois estão lá. Ela abre a porta e sai. A maçaneta sempre trava quando fecha. Ele senta-se no sofá. Cabeça inclinada. A maçaneta sempre trava quando fecha. Dedo indicador nos lábios e um fragor de soluço nos cabelos. Ele nem saiu de casa, mas é como se já estivesse trabalhando. Aliás, o que nesta vida não é trabalho e casmurrice?

Abre a porta e sai.

(J. Campelo)

Porque toda leitura é autobiográfica e toda saudade é uma espécie de velhice.

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