Legato
Abre os olhos e reconhece a rua. As casas à esquerda tão iguais e tão diferentes. Ela diz a si mesma “vai passar, isso vai passar”, e as gotas cada vez mais estáticas do céu. Sacode os pés encharcados e percebe a infinidade que o gelado da água a leva a abandonar. Não há nem sequer um “se”. Tudo: uma réstia de samambaia pendurada de uma janela erma, o sorriso minúsculo das poças de água sob os varais comedidos, procissões de passos e suspiros sob o sono dos toldos. Cheiros e gostos irreconhecíveis e insondáveis pela bruma. Uma louça ao chão. Bater de talheres. Som rouco de matraca. Tudo calculado (uma vez que o caos é Deus caprichando).
Ela, parada, no meio. Tenta não reconhecer a rua. E os enormes canteiros de obras que escondem um pensamento de não vir. E um avião que cruza o céu silente e penosamente. E uma família que bem pode ser a sua, acenando de várias janelas. E os pombos, encharcados, comendo migalhas adocicadas de água nuvosa.
Aí ela finalmente se esquece da rua, e vira estrada.
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