sábado, 3 de setembro de 2011

O rapto das Sabinas. (sobre amor e outros demônios)



"Eu a havia conhecido 34 anos antes em Viena, comendo salsichas com batatas cozidas e bebendo cerveja de barril numa taberna de estudantes latinos. Eu havia chegado de Roma naquela manhã, e ainda recordo minha impressão imediata por seu imenso peito de soprano, suas lânguidas caudas de raposa na gola do casaco e aquele anel egípcio em forma de serpente. Achei que era a única austríaca ao longo daquela mesona de madeira, pelo castelhano primário que falava sem respirar com sotaque de bazar de quinquilharia. Mas não, havia nascido na Colômbia e tinha ido para a Áustria entre as duas guerras, quase menina, estudar música e canto. Naquele momento andava pelos trinta anos mal vividos, pois nunca deve ter sido bela e havia começado a envelhecer antes do tempo. Em compensação, era um ser humano encantador. E também um dos mais temíveis.

Viena ainda era uma antiga cidade imperial, cuja posição geográfica entre os dois mundos irreconciliáveis deixados pela Segunda Guerra Mundial havia terminado de convertê-la num paraíso do mercado negro e da espionagem mundial. Eu não teria conseguido imaginar um ambiente mais adequado para aquela compatriota fugitiva que continuava comendo na taberna de estudantes da esquina por pura fidelidade às suas origens, pois tinha recursos de sobra para comprá-la à vista, com clientela e tudo. Nunca disse o seu verdadeiro nome, pois sempre a conhecemos com o trava-língua germânico que os estudantes latinos de Viena inventaram para ela: Frau Frida. Eu tinha acabado de ser apresentado a ela quando cometi a impertinência feliz de perguntar como havia feito para implantar-se de tal modo naquele mundo tão distante e diferente de seus penhascos de ventos do Quindío, e ela me respondeu de chofre:

Eu me alugo para sonhar.

Na realidade, era seu único ofício.Havia sido a terceira dos onze filhos de um próspero comerciante da antiga Caldas, e desde que aprendeu a falar instalou na casa o bom costume de contar os sonhos em jejum, que é a hora em que se conservam mais puras suas virtudes premonitórias. Aos sete anos sonhou que um de seus irmãos era arrastado por uma correnteza. A mãe, por pura superstição religiosa, proibiu o menino de fazer aquilo que ele mais gostava, tomar banho no riacho. Mas Frau Frida já tinha um sistema próprio de vaticínios.

— O que esse sonho significa — disse — não é que ele vai se afogar, mas que não deve comer doces.

A interpretação parecia uma infâmia, quando era relacionada a um menino de cinco anos que não podia viver sem suas guloseimas dominicais. A mãe, já convencida das virtudes adivinhatórias da filha, fez a advertência ser respeitada com mão de ferro. Mas ao seu primeiro descuido o menino engasgou com uma bolinha de caramelo que comia escondido, e não foi possível salvá-lo.
Frau Frida não havia pensado que aquela faculdade pudesse ser um ofício, até que a vida agarrou-a pelo pescoço nos cruéis invernos de Viena. Então, bateu para pedir emprego na primeira casa onde achou que viveria com prazer, e  quando lhe perguntaram o que sabia fazer, ela disse apenas a verdade: "Sonho".
(...)"
(Gabriel García Marquez)

______________________

 De Penélope a Helena. De Antígona a Medeia. Capitu. Sempre Capitu. A dos 14 anos. Pesadelo de todos os Bentinhos, Aquiles, Menelais, Jasões e Creontes. Cansada de todas as esperas. Quero Heitor. Páris. Os ardis de Odisseu. Mas, enquanto Ítaca não é encontrada, não darei uma de musa de Camões afogada. Prefiro a do meu  Gabo. (ou  Ariel do verdadeiro Bardo).

Não mais visões de espelhos. Mirar novos alvos, e olhares inteiros. Porque só a poesia é clarividente.


"no final das contas, somos todos sobreviventes de nós mesmos
lá nas prisões do infinito, ousar ser eterno: amor como atalho e labirinto
mas se você não está morto, sonhará porto por perto. anoiteça o que anoitecer, coração aberto"




5 comentários:

Lila disse...

e aos psicólogos de plantão: nem tudo precisa manter conexão.

Nilton Penco disse...

Heitor,Páris e Jasão são soh aspirações q o ser humano gostaria de alcançar, mas duvido q ficariam satisfeitos se, por ventura conseguissem. Muitas vezes os sonhos são melhores em seu mundo do que no nosso. Mas mesmo assim, sonhar eh muito bom.

Lila disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Li disse...

o sonho é a (minha) realidade suprassensível. Borges me entenderia. Aliás, essa frase deve estar em um dos livros da biblioteca infinita dele. um pedaço de papel rasgado preso num hexágono de estante.

elry disse...

seres humanos encantadores são sempre os seres humanos mais temíveis. sempre...