quinta-feira, 3 de maio de 2012

Dos finais

 - E aqui tens tu uma existencia d'homem! Em dez annos não me tem  succedido nada, a não ser quando se me quebrou o phaeton na estrada de Saint-Cloud..: Vim no Figaro.
       Ega ergueu-se, atirou um gesto desolado:
       - Falhámos a vida, menino!
- Creio que sim... Mas todo o mundo mais ou menos a falha. Isto é falhase sempre na realidade aquella vida que se planeou com a imaginacão. Diz-se:  «vou ser assim, porque a belleza está em ser assim». E nunca se é assim, é-se  invariavelmente assado, como dizia o pobre marquez. Ás vezes melhor, mas sempre differente.
       Ega concordou, com um suspiro mudo, começando a calçar as luvas.
       O quarto escurecia no crepusculo frio e melancolico d'inverno. Carlos pôz  tambem o chapéo: e desceram pelas escadas forradas de velludo côr de cereja,  onde ainda pendia, com um ar baço de ferrugem, a panoplia de velhas armas. Depois na rua Carlos parou, deu um longo olhar ao sombrio casarão, que n'aquella primeira penumbra tomava um aspecto mais carregado de residencia  ecclesiastica, com as suas paredes severas, a sua fila de janellinhas fechadas,  as grades dos postigos terreos cheias de treva, mudo, para sempre deshabitado,  cobrindo-se já de tons de ruina. Uma commoção passou-lhe n'alma, murmurou, travando do braço do Ega:
       - É curioso! Só vivi dois annos n'esta casa, e é  n'ella que me parece estar  mettida a minha vida inteira!
       Ega não se admirava. Só alli no Ramalhete elle vivera realmente d'aquillo  que dá sabôr e relevo á vida - a paixão.      
 - Muitas outras coisas dão valor á vida... Isso é uma velha idéa de romantico, meu Ega!
       - E que somos nós? exclamou Ega. Que temos nós sido desde o collegio,  desde o exame de latim? Romanticos: isto é, individuos inferiores que se governam na vida pelo sentimento e não pela razão...      
      Mas Carlos queria realmente saber se, no fundo, eram mais felizes esses  que se dirigiam só pela razão, não se desviando nunca d'ella, torturando-se  para se manter na sua linha inflexivel, sêccos, hirtos, logicos, sem emoção até  ao fim...
       - Creio que não, disse o Ega. Por fóra, á vista, são desconsoladores. E por  dentro, para elles mesmos, são talvez desconsolados. O que prova que n'este lindo mundo ou tem de se ser insensato ou sem sabor...
       - Resumo: não vale a pena viver...
- Depende inteiramente do estomago! atalhou Ega.
      

Riram ambos. Depois Carlos, outra vez sério, deu a sua theoria da vida, a  theoria definitiva que elle deduzira da experiencia e que agora o governava.
Era o fatalismo musulmano. Nada desejar e nada recear... Não se abandonar a  uma esperança - nem a um desapontamento. Tudo aceitar, o que vem e o que foge, com a tranquillidade  com que se acolhem as naturaes mudanças de dias agrestes e de dias suaves.  E, n'esta placidez, deixar esse pedaço de materia organisada, que se chama o  Eu, ir-se deteriorando e decompondo até reentrar e se perder no infinito Universo... Sobretudo não ter appetites. E, mais que tudo, não ter contrariedades.
       Ega, em summa, concordava. Do que elle principalmente se convencera,  n'esses estreitos annos de vida, era da inutilidade do todo o esforço. Não valia  a pena dar um passo para alcançar coisa alguma na terra - porque tudo se resolve, como já ensinára o sabio do Ecclesiastes, em desillusão e poeira.      

- Se me dissessem que alli em baixo estava uma fortuna como a dos Rothschilds ou a corôa imperial de Carlos V, á minha espera, para serem minhas se eu para lá corresse, eu não apressava o passo... Não! Não sahia d'este passinho lento, prudente, correcto, seguro, que é o unico que se deve ter  na vida.
       - Nem eu! acudiu Carlos com uma convicção decisiva.
       E ambos retardaram o passo, descendo para a rampa de Santos, como se  aquelle fosse em verdade o caminho da vida, onde elles, certos de só encontrar  ao fim desillusão e poeira, não devessem jámais avançar senão com lentidão e  desdem. Já avistavam o Aterro, a sua longa fila de luzes. De repente Carlos teve um largo gesto de contrariedade:       - Que ferro! E eu que vinha desde Paris com este appetite! Esqueci-me de mandar fazer hoje para o jantar um grande prato de paio com ervilhas.
       E agora já era tarde, lembrou Ega. Então Carlos, até ahi esquecido em  memorias do passado e syntheses da existencia, pareceu ter inesperadamente consciencia da noite que cahira, dos candieiros accêsos. A um bico de gaz tirou o relogio. Eram seis e um quarto!
       - Oh, diabo!... E eu que disse ao Villaça e aos rapazes para estarem no Braganza pontualmente ás seis! Não apparecer por ahi uma tipoia!...
       - Espera! exclamou Ega. Lá vem um «americano», ainda o apanhamos.
       - Ainda o apanhamos!
       Os dois amigos lançaram o passo, largamente. E Carlos, que arrojára o  charuto, ia dizendo na aragem fina e fria que lhes cortava a face:
       - Que raiva ter esquecido o paiosinho! Emfim, acabou-se. Ao menos assentamos a theoria definitiva da existencia. Com effeito, não vale a pena fazer um esforço, correr com ancia para coisa alguma...
       Ega, ao lado, ajuntava, offegante, atirando as pernas magras:
       - Nem para o amor, nem para a gloria, nem para o dinheiro, nem para o poder...
       A lanterna vermelha do «americano», ao longe, no escuro, parára. E foi  em Carlos e em João da Ega uma esperança, outro esforço:
       - Ainda o apanhamos!
- Ainda o apanhamos!
       De novo a lanterna deslisou, e fugiu. Então, para apanhar o «americano»,  os dois amigos romperam a correr desesperadamente pela rampa de Santos e  pelo Aterro, sob a primeira claridade do luar que subia.

Os Maias.

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Obrigada, Eça.

4 comentários:

Vitor Bornéo disse...

Como definir esse final? Emociono-me muito com o primeiro trecho que vc destacou... é tão cruel, tão deliciosamente cruel. Minha sensação, sempre que leio, é que assim Os Maias se foram junto com o romantismo... Irônico, não? Uma doce-amarga ironia essa do Eça...
Acho que fazemos parte de um clube seleto, Lili: os que não deixam a casa Maia morrer jamais. :-)

Li disse...

Somos responsáveis por garantir a linhagem da família, assim como dessa literatura.

Bernardo disse...

muita boa fé e pouco bom gosto nesse trecho. Passo adiante

Li. disse...

ai, esses eslavos...